segunda-feira, 14 de novembro de 2016

HOMÚNCULO

O HOMÚNCULO DE PENFIELD


Aluno de Charles Sherrington (1857-1952), considerado por muitos o pai da neurociência de sistemas, o neurocirurgião Wilder Penfield (1891-1976) foi o responsável pelo início da revolução na compreensão do cérebro.

Através de suas observações, obtidas durante procedimentos neurocirúrgicos para remoção de focos epilépticos corticais durante 19 anos, em pacientes cuja epilepsia não podia ser contida com medicamentos, Penfield mapeou o tipo de sensações táteis geradas por estimulações elétricas de regiões corticais localizadas à frente e atrás do sulco central.

Gerou-se, assim, a imagem mítica do Homúnculo e foi dado um passo gigantesco na compreensão do funcionamento do cérebro por via de populações.

A neurociência pode ser dividida em duas linhas de pesquisa: populacionista e localizacionista.

A linha localizacionista  reduz o cérebro a neurônios que funcionariam de modo isolado dentro de um cérebro que é dividido com perfeição em determinadas funções. 

Por outro lado, a linha populacionista não concorda com a perfeição na divisão do cérebro em funções, e vê que um único neurônio não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento ou pensamento. Assim, várias populações de neurônios agem em várias regiões do cérebro juntamente, como se fossem uma única coisa. Talvez seja este o motivo dos constantes comportamentos ambíguos do ser humano, que proporcionam, essencialmente, a nossa impressão de um "eu".

"Um único neurônio não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento ou pensamento." Miguel Nicolelis

A visão reducionista, localizacionista, predominante na neurociência do século XX, dividia o cérebro em regiões individuais que continham uma alta densidade de neurônios. Essas regiões foram então batizadas de áreas ou núcleos neurais. 

De acordo com essa estratégia, a missão do neurocientista seria estudar individualmente os diferentes tipos de neurônios presentes em cada uma dessas estruturas, de maneira minuciosa. 

Esperava-se que com o estudo exaustivo de um grande número de neurônios presentes em suas conexões locais com outras estruturas, áreas e núcleos neurais, a informação acumulada permitisse compreender o funcionamento do cérebro como um todo. 

O dogma no reducionismo levou a grande maioria dos neurocientistas do século passado a dedicar suas carreiras à descrição detalhista das propriedades anatômicas, fisiológicas, bioquímicas, farmacológicas e moleculares de neurônios individuais e seus principais componentes estruturais. Como observam os neurocientistas populacionistas, aquele neurocientista reducionista do passado se assemelhava a um ecólogo tentando entender o ecossistema da floresta amazônica observando o funcionamento de uma única árvore de cada vez.

Já a neurociência populacionista estuda como os elementos cerebrais interagem entre si, tal como movimentos sociais, o mercado financeiro mundial, a internet ou uma colônia de formigas. 

O sistema complexo possui entidades cujas propriedades mais fundamentais tendem a emergir por meio da interação coletiva de seus múltiplos elementos individuais. São centenas de bilhões de neurônios e suas conexões, sinapses, que conjuntamente proporcionam mudanças fisiológicas de milissegundo a milissegundo - o cérebro humano representa um modelo ideal de um sistema complexo.

A contribuição de Penfield em meio a esta discussão foi indiscutivelmente preciosa.

Penfield coletou dados intraoperatórios obtidos durante mais de quatrocentas craniotomias em pacientes epilépticos.

Neste procedimento, realizado sob anestesia local, uma janela em forma de circulo é aberta no crânio através da remoção do osso, com conseqüente exposição do tecido cerebral, revestido e protegido por uma firme lâmina de fibras colágenas – as meninges. Após uma simples incisão das meninges, o córtex cerebral pode ser visualizado diretamente. Desprovido de qualquer fibra ou receptor neural capaz de sinalizar a presença de um estímulo de dor (nociceptivo), tanto a manipulação como a estimulação elétrica do tecido são indolores. 

Assim, Penfield pode estimular eletricamente regiões do córtex em busca da área que causava as crises epilépticas em seus pacientes. Acordados durante todo o procedimento, os pacientes eram questionados por Penfield durante cada período de estimulação elétrica sobre que tipo de sensações ou movimento corpóreo derivava de cada estímulo.

Ao longo dos anos, Penfield e seu grupo de colaboradores realizaram todo o mapeamento das regiões corticais localizadas à frente e atrás do sulco central.

O estudo observou que os sítios que geravam sensações táteis do córtex motor não eram um mero artefato produzido pela estimulação de fibras colaterais nervosas. Então surge uma conclusão clara:
 
Enquanto o córtex motor primário e o somestésico individualmente exibem um claro grau de especialização funcional, ambas as regiões, apesar de se situarem em dois lobos distintos, aparentemente compartilham suas funções na gênese de comportamentos sensório-motores”.

Esta conclusão sugere a hipótese de que áreas individuais do córtex, apesar de especializadas, podem contribuir para outras funções cerebrais envolvidas na criação de múltiplos comportamentos. Deste modo, existiria uma organização funcional diferente do que pensam os localizacionistas; o córtex motor primário, enquanto envolvido, sobretudo, na execução de comportamentos motores voluntários, também contribuiria, de forma secundária, na geração de nossas sensações táteis. 

Assim, em condições normais, o córtex somestésico primário teria uma probabilidade muito mais alta de estar envolvido na definição de nosso rico repertório de percepções táteis do que na geração de programas motores.

Penfield descobriu com a reconstrução da sequência espacial das sensações táteis relatadas por seus pacientes que, enquanto deslocava o local da estimulação cortical, a localização da sensação tátil relatada pelos pacientes progressivamente se movia também, começando nos artelhos, dorso do pé, depois a perna, quadril, tronco, pescoço, cabeça, ombro, braço, cotovelo, antebraço, pulso, mão, cada um dos dedos, face, lábios, cavidade intraoral, e finalmente, garganta e cavidade abdominal. 

Quando essa sequência espacial foi grafada, sobreposta a uma imagem de secção transversa do córtex, Penfield observou a emergência de um mapa topográfico completo do corpo humano, que ficou conhecido como “homúnculo” sensorial.

A ilustração que define de forma tão clara o mapa topográfico do corpo humano no córtex somestésico primário foi confeccionada pela sra. H. P. Cantlie – figura que acabou por se tornar uma das mais conhecidas da literatura médica de todos os tempos.

A figura confeccionada pela sra. Cantlie mostra um corpo humano grotescamente distorcido, mas, que nas palavras do médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, na realidade:

“reproduz fidedignamente a escultura neural que emerge de um processo ontogenético conhecido como magnificação cortical, que determina que mapas neurais de nosso corpo sofram uma expansão desproporcional de certas regiões em detrimento de outras.”

Isso que dizer que as regiões expandidas do homúnculo – dedos, mãos, face, região perioral e língua - correspondem a estruturas revestidas por um epitélio rico em mecanorreceptores, uma classe de sensores neurais inervados e distribuídos por terminais axonais altamente especializados de nervos periféricos. 

Essas terminações nervosas especializadas dos mecanorreceptores são responsáveis por traduzir, o tempo todo, as mensagens contidas em estímulos táteis gerados pelo mundo exterior que nos  circunda como pelo universo corpóreo interior que foge do alcance de nosso olhar. De forma proporcional, outras partes do corpo do homúnculo recebem muito pouco estímulo sensorial – como as costas.

A explicação funcional para a ocorrência do fenômeno de magnificação cortical durante a configuração ontogenética dos mapas táteis do cérebro humano é relativamente simples:

"Como na nossa espécie a pele que reveste a ponta dos dedos, as mãos e a face contém a maior densidade de mecanorreceptores observada em todo o corpo, essas regiões definem os órgãos táteis mais eficientes e confiáveis, por meio dos quais podemos construir uma imagem tátil do mundo ao redor."

O fenômeno da magnificação cortical não é um privilégio da espécie humana. No geral, até onde foi estudado e documentado nos últimos 70 anos, os cérebros dos mamíferos apresentam esses mapas, somatotópicos, distorcidos.

Por exemplo, em guaxinins, a figura de um “guaxintúnculo” pode ser inferida pela presença de um mapa cortical que privilegia a expansão da representação do rabo e patas dianteiras. Assim, nos principais órgãos táteis desse mamífero, o fenômeno de magnificação cortical se manifesta pela representação desproporcional da pele dessas regiões dentro de seu cérebro.

No rato (rátunculo), por exemplo, as vibrissas faciais ("bigodes"), focinho e patas dianteiras são magnificados desproporcionalmente dentro dos mapas corpóreos que habitam o cérebro desse animal – em seu córtex somestésico.

O neurocientista brasileiro aponta que, apesar do grande destaque na literatura especializada ao estudo dos mapas somatotópicos no córtex, representações topográficas e altamente distorcidas do corpo também são encontradas em todas as estruturas subcorticais. 

Estas definem o circuito neural por onde trafegam os feixes ascendentes de nervos que carregam informação tátil da pele e órgãos internos, bem como o feedback de sinais originários dos músculos e tendões, para os confins do sistema nervoso central.

O que, de fato, não inferioriza a conclusão de Penfield, mas a complementa. Mais um passo no caminho a favor da neurociência de sistemas e populações, e compreensão do cérebro.
 


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