quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

“O medo do futuro deve ser atenuado pela ação do Estado”

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Entrevista com Luiz Gonzaga De Mello Belluzzo

Marilza de Melo Foucher *

“Creio que uma socialização bastante completa do investimento será o único meio de se aproximar do pleno emprego, ainda que isso não exclua qualquer forma de cooperação entre a autoridade pública e a iniciativa privada.”

– Diante de um Estado esfacelado como está hoje, de que forma um plano keynesiano seria capaz de reorganizar o capitalismo?

– Keynes trata o Estado como uma instância ética e política capaz de fazer a mediação dos interesses conflitantes da sociedade civil. É preciso que o Estado e seus corpos intermediários tenham um papel indutor e regulador. Tudo isto tem que ser contextualizado no período em que ele viveu. Keynes tinha uma confiança enorme na capacidade do Estado. O Estado keynesiano é capaz de ver além dos interesses privados. Liberal e hegeliano, o Estado de Keynes é o espaço da universalização dos particularismos da sociedade civil.
Keynes tinha horror do individualismo, mas dizia que há sempre um espaço para certo individualismo, este sentimento que move o indivíduo na economia mercantil-capitalista. Ele achava “o amor ao dinheiro” um horror, mesmo sendo um fator de progresso e de mudança social, todavia, the love of Money ‘pode se transformar em um tormento para o homem moderno’. No livro Perspectivas econômicas para nossos netos Keynes escrevia que os homens precisam voltar para os valores fundamentais da religião, da boa vida, da convivência. Este é um texto muito bonito. Havia uma visão ética ali por trás. Havia também uma concepção liberal do Estado na sua origem, ele não foi capaz de ver a transformação que o estado ia sofrer no capitalismo monopolista e na na sociedade de massas, em que essa independência do Estado em relação à sociedade civil vai sendo minada. Falo aqui da sociedade civil como sociedade dos interesses.
A mesma coisa diz respeito à taxação progressiva. Keynes não acredita que o capitalismo entregue à sua razão interna possa reduzir as desigualdades de renda e riqueza. Hoje se observa a dilaceração do Estado Social . Os sistemas tributários abandonaram a progressividade e começaram a cobrar impostos sobre as mercadorias e serviços em cima dos assalariados. A tentativa de manter o peso do imposto de renda, dos impostos do patrimônio, tudo isto foi destruído pelo movimento do capitalismo.
Quanto ao terceiro pilar da proposta keynesiana trata-se da eutanásia do “rentier”. Keynes explicou no Tratado da Moeda que o sistema bancário moderno é muito integrado e muito desenvolvido não há razão que o capital seja considerado escasso. Ricardo discutiu a questão da renda da terra. Na medida em que a terra vai sendo ocupada, os proprietários podem exigir uma renda derivada da escassez.
O moderno sistema bancário cria moeda (depósitos) ao conceder empréstimos. Cria liquidez à frente. Na economia monetária podem surgir problemas de liquidez, ou seja, de adiantamento de dinheiro para a realização do gasto. O investimento pode não ocorrer se há um problema de confiança dos bancos em relação ao pagamento dos empréstimos adiantados pelos bancos ou se os empresários não tomam crédito porque antecipam resultados ruins de seu empreendimento futuro.
A existência dos bancos modernos superou o obstáculo da poupança prévia próprio de uma economia natural. Numa economia natural, por exemplo, que trabalha só com o trigo, você precisa reservar uma parte de sua colheita pra plantar no ano seguinte. Isto é poupança, um conceito da economia real não monetária, se tal coisa existisse.
Numa economia monetária, os empresários só não vão investir se observarem que o rendimento esperado com a posse de um novo bem de capital (criação de uma fábrica) é inferior às taxas de juros. Keynes propunha a administração pública do sistema bancário a fim de facilitar a oferta de capital monetário para empreendimentos rentáveis. É a mesma coisa que Marx escreve no volume 3 de O Capital. Diga-se eles tem uma visão muito parecida sobre a ontologia do econômico.
Em que sentido? Keynes diz que pode definir a economia empresarial capitalista como uma existência de um lado de empresas que tenham o controle dos meios de produção e do dinheiro e de outro os trabalhadores que são obrigados a vender sua força de trabalho. No volume 29 de Obras Escolhidas estão os escritos que antecedem a Teoria Geral. Ele abordou o capitalismo desta maneira, estas informações se encontram nos manuscritos que foram descobertos mais tarde.
Os capitalistas não gastam com objetivo de maximizar a produção, ele gasta com o objetivo de maximizar seus ganhos, seu lucro monetário. O tratamento que os dois dão à estrutura do capital vai ser fundamental para a compreensão da evolução do capitalismo. Voltando pra questão da crise atual, Marx tem páginas muito importantes que Keynes não tem sobre o progresso técnico a desvalorização do capital e desvalorização do trabalho.
Então Marx vai muito mais além do que Keynes. Ainda que Keynes tenha uma visão que para segurar a este ímpeto do capitalismo de desvalorizar o capital, é preciso segurar a concorrência e não deixar que ela seja devastadora. Isto é uma visão muito conservadora, por isso ele acha possível manter o capitalismo funcionando mais ou menos com aquela condição que eu já descrevi sobre a socialização de investimentos, sistema fiscal progressivo, eutanásia rentier. Ele defendia no quarto ponto uma coordenação das economias nacionais e esboça aí uma ordem econômica mundial.
Propõe a construção das instituições internacionais públicas que permita o ajustamento sem traumas cambiais e monetários dos déficits (e superávits) dos balanços de pagamentos. Isto significaria facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Mais tarde, em Bretton Woods, Keynes propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. Este emitiria uma moeda bancária, o “bancor”, que seria destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. O controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem mundial”.

– Professor, diante da realidade de hoje, quanto ao papel do FMI, perdoe insistir, mas como explicar que o plano Keynes continue atual no contexto da globalização econômica, face a tudo o que assistimos nesses últimos tempos?

– O plano Keynes nunca foi tão verdadeiro e atual, mas sua implantação nunca foi tão difícil.

– Por isso eu tenho curiosidade de saber o como, o por quê?

– Isto teria uma implicação muito séria que tem a ver com a questão do poder político das nações. Ter o controle da moeda reserva confere muitas vantagens, como bem disse (o ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) no seminário. De Gaulle também denunciava este privilégio exorbitante. Ele tinha implicância com esse poder norte-americano, que ele conhecia muito bem, isto facilitava o movimento das empresas norte-americanas, facilitava muito bem os investimentos externos, facilitava o fato dos Estados Unidos não terem problema com sua dívida pública, ao contrário do que pensam os republicanos norte-americanos. Eles podem refinanciá-las com grande facilidade, usando até o movimento de capitais do resto do mundo para os Estados Unidos. Isto foi importantíssimo na montagem da crise e é importante agora com a taxa de juros sobre um ativo de 10 anos. Um título do Tesouro para 10 anos estar hoje em 1.32 é baixíssimo. É um convite ao endividamento para poder gastar. Mas os republicanos norte-americanos estão obcecados pela divida.

– Mas voltando ao plano Keynes…

– Ele nunca foi tão clarividente na sua análise e proposições, ele queria evitar exatamente que ocorresse esses desequilíbrios crônicos entre balanço de pagamentos dos países mas, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil, pois as condições políticas para proceder a uma reforma dessas não existem, existiram naquele momento, por várias razões na verdade, uma das quais era o sistema monetário internacional, que estava destruído e precisava ser reconstruído desde o inicio, após a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos saíram da guerra em condições melhores, com suas indústrias, empresas e seu aparato produtivo intocados. Eles vinham da experiência do “New Deal”, tinham essa visão reformista, foram eles que propuseram as reuniões que criaram a ONU, como as de Bretton Woods que estabeleceram as organizações multilaterais. Logicamente que, quando chega o momento de definir o que o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional fariam, eles asseguraram na verdade a superioridade deles, dos Estados Unidos, que ficaram no coração do sistema. Eles foram generosos, pois ajudaram na reconstrução da Europa, com os mecanismos de ajuda que criaram. Este gesto de generosidade não é gratuito face à guerra fria travada com o bloco soviético. Aqui na Europa houve uma confrontação política entre as duas concepções. A construção do Estado de bem-estar na Europa tem muito a ver com a presença da União Soviética, com o medo da expansão União Soviética.
Eu acho que hoje em dia todas as propostas de reformas passam ao largo disso que o Keynes disse e nunca foi tão atual, pois não há outra maneira de resolver esta questão dos desequilíbrios globais.
Só eu e o Lula abordamos esta questão, os outros não trataram da questão da coordenação internacional. Por que o engano é supor que você vai partir para as políticas de competividade como se a competição fosse um processo que criaria um espaço comum a que todos convergiriam?… A concorrência internacional é geradora de desequilíbrio. Basta ver a China em relação ao resto do mundo, ou a Alemanha em relação Europa. No caso da China, quando fez as reformas, abriu seu espaço territorial para os investimentos estrangeiros e vai oferecer mão de obra barata para alentar a competição por preços das empresas nos Estados Unidos e Europa. Quem foi para a China? As grandes empresas norte-americanas, europeias e japonesas. Eles criaram lá seu espaço de competição. O que aconteceu? Um problema de desemprego crescente nos Estados Unidos e Europa. Então você tem hoje o seguinte fenômeno: o sistema empresarial norte-americano vai muito bem obrigado. Isto é verdade também para as empresas europeias. Mas o espaço da economia territorial, o espaço territorial de convivência, onde as pessoas trabalham, vivem, moram, estudam, comem, têm lazer, esta cada vez mais ameaçado com os cortes nas áreas dos direitos, da redução de salários, de rebaixamento do padrão de vida etc. Por isso, as propostas de Keynes continuam atuais e, no entanto, nunca foram tão impossível.
Os Estados Unidos não querem nem saber disso. Mas os norte-americanos terão que enfrentar estas questões. Porque se eles mantiverem esse sistema monetário internacional, não é porque o dólar é fraco, o dólar é forte, então os chineses vão amealhar, em vez de US$ 3 trilhões de reserva, US$ 5 trilhões! Isto é ruim para o comércio internacional e ao mesmo tempo é muito grave porque os chineses vão exercer de alguma forma esse poder, assim como o Brasil, que tem hoje uma reserva de US$ 370 bilhões e vai ter que acoplar mais.

– O que o senhor achou da proposta dos dois presidentes do Brasil e da França sobre a criação de um conselho de segurança econômica e social, nos moldes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU)? Já existe o Conselho Econômico e Social na ONU, todavia, ele não tem grandes poderes…Nem Lula, nem Jospim demonstraram muito entusiasmo…

– Eu acho que o Lula pegou as resoluções do G20 e mostrou que todas elas eram corretas, porém nenhuma delas foi implementada. Por quê? Porque quando você encontra esses obstáculos como esse que eu mencionei com a questão da gestão da reserva de moedas, os Estados Unidos terão que discutir este ponto, não tem como. Os Estados Unidos tinham 40% da produção mundial, hoje eles só têm um pouco mais de 20%. Assim como a União Européia, que também perdeu espaço com o surgimento dos emergentes mais parrudos. Eles terão que rediscutir a reforma do sistema monetário. Por exemplo, o Brasil já estar criando um fundo comum de estabilização para a América Latina. Os fundos regionais vão surgir. O Brasil com o Pré-Sal terá que fazer um fundo soberano e isto é uma arma incrível do Brasil, se bem utilizado. Todavia, isto não vai resolver a questão do desequilíbrio e nem do emprego. A ideia, por exemplo, de o presidente (Barack) Obama dizer que os Estados Unidos terão que trazer de volta as empresas norte-americanas dando-lhes um grau superior de automação, introduzir a robótica, a lógica é a mesma.

– Então, professor Belluzzo, como seria esta nova governança mundial?

– Pois então, a nova governança mundial terá que caminhar nessa direção, do Keynes, não tem como. Torna-se necessário restringir um pouco esta competição, estabelecer regras do comércio internacional que não são estas atualmente aplicadas. A organização da economia internacional passa por outras questões, como a da coordenação mais adequada do comércio, que não podem ser satisfeitas pelas regras atuais Organização Mundial do Comércio (OMC).
Estas regras estipulam o livre comércio o que não é possível, não existe competitividade entre os países, existe entre empresas. Se você aceita as regras da competitividade, deverá aceitar o movimento das empresas para fora; o abandono da economia territorial se estabelece num conflito entre a vida no território. É a lógica abstrata da economia. Esse é o problema do capitalismo. Olhado por certo ângulo, ele é muito suficiente, mas como explicar que existe uma abundancia de capacidade produtiva que poderia atender às necessidades básicas e não básicas das pessoas, e essa incapacidade de gerar igualdade etc. Isto só pode ser feito pela intervenção pública.
Sinceramente, eu fiquei muito impressionado com perplexidade do governo socialista da França. As propostas que eles fazem são francamente insuficientes para enfrentar a gravidade da situação hoje e do que estar pra vir. Adotar por exemplo, políticas de competitividade e austeridade neste momento significa sacrificar ainda mais a população.
Existe certa contradição entre o discurso da competitividade e a criação do Banco de Investimento que ainda não vimos a sua estruturação… A idéia de ter um Banco de Desenvolvimento com o Brasil é muito boa. Hoje o BNDES é o maior do mundo. Talvez seja a melhor resposta para a crise territorial que se vive hoje na Europa.

– A presidenta Dilma apareceu como uma ferrenha defensora da União Européia e do euro, chegando a afirmar que sua criação foi a maior construção política do mundo. Todavia, para a maioria dos cidadãos franceses a Europa política ainda não foi construída daí o não ao tratado de Lisboa… Que sugestões o senhor teria sobre a saída da crise européia? E por que o fortalecimento da União européia é importante para o Brasil?

– Eu venho observando e acompanhando os últimos passos desta crise européia, inclusive esta questão do debate sobre a União Bancaria.
A Alemanha poderia conduzir a rearticulação e o rearranjo da Europa política, não o faz porque caminha numa direção oposta e a França esta numa posição um pouco subordinada. Há uma situação muito difícil, porque o país que poderia funcionar como país residual na absorção dos choques tem bloqueios históricos e ideológicos. A Alemanha está jogando em função de seus próprios interesses, muito diferente do que os Estados Unidos fizeram no pós-guerra. A Alemanha tem essa característica de se considerar um pouco acima, isto é uma mancha que não sai. Considera-se uma nação privilegiada, no certo sentido um pouco parecido no conteúdo e na forma como os Estados Unidos de hoje, da utopia realizada.
Existe hoje uma resistência da Alemanha em romper com a política de austeridade europeia. O povo alemão está convencido de sua capacidade de fazer sacrifícios e suportar; e não está disposto a sacrificar os seus princípios em nome daqueles considerados gastadores e nada cuidadosos com suas economias e endividamentos, tais como os europeus do Sul. Nós temos aí um bloqueio sério.
A Alemanha tem essa coisa também que o Weber percebeu e disse que o povo alemão tinha esse vicio da obediência, é uma condição meio complicada, ao mesmo tempo em que eles se acham superiores, eles são obedientes. Então eles se submetem ao Estado de fato, ao que está ai. Eles têm uma relação muito tosca com o resto da Europa.
Então, penso que a União Europeia poderia ser reconstruída se ela usufruísse um pouco mais liberdade, mais fôlego em suas unidades e nos países membros. Se ela adotasse um mecanismo de compensação fiscal. É um absurdo que os países tenham déficits entre si com uma moeda comum. É preciso uma coordenação dentro do Euro que compreenda diversas estratégias.
No mês de maio deste ano, o prêmio de risco da Espanha, por exemplo, calculado sobre os rendimentos dos títulos alemães de 10 anos chegou a 500 pontos. Para juntar a desgraça ao infortúnio, a corrida bancária e a fuga de capitais chegaram à Ibéria, ameaçando a solvência das instituições grandes, médias e pequenas.
O colapso da confiança não pode ser superado sem a centralização das decisões na autoridade monetária encarregada de zelar pela higidez das relações interbancárias e, portanto, pela “normalidade” das operações de crédito. Você me desculpe, mas isto é de uma burrice inacreditável. Como pensar que uma moeda comum vai funcionar assim? Eu vejo isto no curto e médio prazo com muito pessimismo.
É provável que a crise não atingisse tais culminâncias se as autoridades europeias tivessem admitido a inevitabilidade de uma reestruturação ordenada da dívida e do controle público do sistema bancário. Teriam assim mitigado as agruras da recessão e bloqueados o avanço contagiosos da crise financeira. Trata-se de um caso de psiquiatria política: a opção mesquinha por fazer pouco e devagar – too little, too late - transformou-se numa reação avassaladora do tipo too much forever.


* Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.

Fonte: CdoB

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