quinta-feira, 27 de maio de 2010

Impunidade de crimes da ditadura é 'mancha moral do Brasil'


Eric Brücher Camara
Da BBC Brasil em Londres

O arquivamento da ação que questionava a abrangência da Lei da Anistia, no fim de abril, "é uma mancha na moral do Brasil", na avaliação de um porta-voz da Anistia Internacional entrevistado pela BBC Brasil nesta terça-feira.

Após o lançamento do relatório anual da organização não-governamental em Londres, o porta-voz Tim Cahill disse que o assunto "é fundamental" e só não foi detalhado no relatório anual porque ele foi fechado em dezembro de 2009 (o informe cobre o período de janeiro a dezembro).

"A impunidade não é coisa do passado. É preciso acabar com essa separação de que a vítima da classe média sendo torturado porque lutava por ideais políticos é diferente do jovem negro sendo torturado em uma instituição sócio-educacional. É preciso quebrar esse mito", disse Cahill.

Para o representante da Anistia Internacional, o arquivamento da reinterpretação da lei transmite a mensagem de que a violência oficial "é aceitável em certos casos".

"A mensagem que está sendo claramente enviada a policiais e delegacias é que quando o Estado tortura e mata não existe punição."

Violência policial

A violência policial, por sinal, é uma das críticas mais veementes no capítulo dedicado ao Brasil no novo relatório da ONG.

"A questão da segurança pública é o principal problema e a Lei da Anistia reflete uma realidade de que certos atos são aceitáveis", disse Cahill.

O documento da ONG afirma que em todo o país "houve relatos persistentes de uso excessivo da força, de execuções extrajudiciais e de torturas cometidas por policiais".

"Moradores de favelas ou de comunidades pobres, frequentemente sob o controle de grupos criminosos armados, foram submetidos a incursões policiais no estilo militar", afirma o relatório.

Os observadores da Anistia destacam que muitos policiais "na linha de frente" também foram mortos "no cumprimento do dever".

O estudo da ONG cita os casos específicos de projetos como as Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro; o Pacto pela Vida, de Pernambuco; e as operações Saturação, em São Paulo.

'Autos de resistência'

O relatório destaca que estes projetos foram "bem recebidos por alguns setores da sociedade" e que ofereceram "alternativa aos métodos de policiamento repressivos e abusivos de antes", mas afirma que "moradores de algumas áreas reclamaram de discriminação".

Mas as críticas da organização se concentram nas ações cometidas fora destes projetos. O relatório criticou a descrição oficial de centenas de mortes cometidas por policiais como "autos de resistência", o que, segundo Tim Cahill, garante "impunidade automática" aos autores das mortes.

"Em contrariedade às recomendações do relator especial da ONU sobre execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, e em contrariedade ao III Plano Nacional de Direitos Humanos."

"Centenas de homicídios não foram devidamente investigados e houve poucas ações judiciais, se é que houve alguma."

Outro caso específico citado no relatório foi o de incursões nas favelas de Acari e da Maré, no Rio de Janeiro, em que, moradores "relataram que as operações policiais violentas coincidiam regularmente com a saída das crianças da escola".

As milícias também mereceram destaque no relatório, já que teriam se aproveitado "de seu poder sobre as comunidades para obter vantagens econômicas e políticas ilícitas", além de "ameaçar a vida de moradores" e instituições do Estado.

"Juízes, promotores, policiais e um deputado estadual receberam repetidas ameaças de morte das milícias."

Política internacional

Os observadores da Anistia ressaltaram a política de "construção de uma aliança 'Sul'" do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, embora critiquem que esse esforço tenha se dado "à custa do apoio a uma plataforma mais abrangente de direitos humanos".

De acordo com Tim Cahill, a política internacional de Lula preferiu não adotar uma posição contrária a países como Zimbábue, Irã e outros no Oriente Médio em organismos internacionais como o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

"Com isso, o Brasil fragilizou o sistema de direitos humanos internacional. O país tem muito mais para contribuir internacionalmente e ao mesmo tempo assegurar o respeito aos direitos humanos no próprio país", disse Cahill.

Para a Anistia Internacional – que afirma ter enviado uma carta aos pré-candidatos à Presidência exigindo um posicionamento sobre a questão de direitos humanos – o saldo dos oito anos de governo Lula, no entanto, foi positivo.

"Houve avanços importantes como o reconhecimento de vários temas, a implantação de mecanismos de defesa dos direitos humanos, reformas na legislação e investimentos sociais, como o Bolsa Família, que melhoraram reduziram a desigualdade no país", afirmou.

O porta-voz da Anistia Internacional ressaltou entretanto que ao esbarrar em "interesses econômicos", o governo recua.

"Megaprojetos econômicos são feitos à custa de direitos humanos de povos indígenas, populações ribeirinhas", disse Cahill, citando os exemplos do projeto hidrelétrico de Belo Monte e de planos de construção no Rio de Janeiro e no Amazonas.

Direitos indígenas

O relatório da Anistia voltou a detalhar a situação dos indígenas brasileiros, destacada no relatório do ano passado, após os episódios de violência na reserva Raposa Serra do Sol.

Dessa vez, a decisão de março de 2009 do Supremo Tribunal Federal rejeitando a legalidade da reserva foi elogiada pela Anistia.

No entanto, o relatório denuncia problemas graves no Mato Grosso do Sul.

"O Estado continuou a ser foco de abusos graves contra os direitos humanos dos povos indígenas do Brasil. O governo estadual e o poderoso lobby dos produtores rurais fizeram uso dos tribunais para impedir a identificação de terras indígenas."

No entanto, a Anistia reconheceu avanços no reconhecimento de terras indígenas através da homologação de nove áreas em Roraima, Pará, Amazonas e Mato Grosso do Sul.

O relatório se baseou em observações realizadas durante os meses de janeiro a dezembro de 2009, com visitas de representantes da Anistia Internacional em maio e dezembro.

Sistema carcerário

No trecho dedicado ao sistema carcerário brasileiro, a Anistia volta a criticar o Brasil.

"Os detentos continuaram sendo mantidos em condições crueis, desumanas ou degradantes. A tortura era utilizada regularmente como método de controle, de humilhação e de extorsão", diz o documento.

Além disso, o relatório cita ainda a superlotação carcerária como "problema grave" e um aumento da violência nas prisões por causa do "controle dos centros de detenção por gangues".

Segundo a ONG, os relatos mais graves saíram do Espírito Santo.

"Houve denúncias de tortura, assim como de superlotação extrema e de utilização de navios (chamados 'microondas') como celas", afirma o documento.

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