sábado, 11 de outubro de 2008

As duas Bolívias que se enfrentam


Ainda titubeantes, as maiorias indígenas ensaiam um projeto nacional e capaz de superar as relações de predação, privilégios e servidão. Para a oligarquia, não se trata de integrar uma nação — mas de usufruir dela como se fosse sua hacienda, e já sem apego à própria retórica da democracia.

Ricardo Cavalcanti-Schiel

(14/09/2008)

Em 1867, o presidente boliviano Mariano Melgarejo, um militar que passou toda sua vida ocupado em conspirações, e que se tornara uma espécie de testa-de-ferro dos novos setores liberais da oligarquia, cedeu de bom-grado ao Brasil 150 mil Km² de terras ao longo do Rio Madeira e outro tanto no que é hoje a porção do Mato Grosso do Sul a oeste do Rio Paraguai. Despachando numa penada parte do território inexplorado do seu país, o tal presidente teria se referido a essa última região mencionada como “uns pântanos inservíveis”; pântanos que viriam a ser uma boa parte do que é hoje conhecido como o Pantanal Matogrossense, onde se situa, por exemplo, a importante jazida de ferro e manganês de Urucum.

Um ano antes, Melgarejo, satisfazendo o apetite mercantil da oligarquia liberal a quem servia, havia determinado a venda, pelo Estado, de todas as terras indígenas “de comunidade” (ou seja, coletivas; um absurdo jurídico que não poderia continuar existindo sob a ordem liberal), uma medida que acendeu o estopim da revolta no campo e que serviu de ponto de partida para uma permanente mobilização aimara que já dura quase 150 anos. Por essa mesma época, o tal presidente facilitou também a penetração de interesses econômicos anglo-chilenos na região de Atacama, coisa que viria a ser o prelúdio da cobiça desses interesses pelo rico território da porção litorânea boliviana do Pacífico. Com efeito, em 1879, com tropas armadas e treinadas no genocídio perpetrado contra os índios Mapuche no sul do país, o Chile invadiu os portos bolivianos e deu início à Guerra do Pacífico, que resultaria na espoliação dos territórios bolivianos e peruanos ricos em salitre e cobre; riqueza que patrocinou o ostentoso festim da oligarquia chilena na transição do século 19 para o século 20.

Apesar do pacto de 1884, que firmava uma trégua indefinida entre Bolívia e Chile, aqueles territórios invadidos eram passíveis de uma reclamação jurídica internacional, caso a Bolívia não reconhecesse, através de um documento de direito internacional, a cessão definitiva dos mesmos. Em 1904, num acordo costurado entre os setores oligárquicos dos dois países, a Bolívia finalmente firma o tratado em que cede todo seu litoral ao Chile, e sela seu próprio destino para o século que se inicia. Como avalia o historiador boliviano Rodolfo Becerra de la Roca: “fechava-se definitivamente a saída livre da Bolívia para o resto do mundo, colocava-se o país à margem das correntes migratórias, econômicas, sociais, culturais e científicas dos países mais avançados, fato que o situaria como um país inválido e entre os povos mais atrasados da Terra” (2002, El Tratado de 1904, la gran estafa, p. 155).

Apenas um ano antes desse fatídico tratado, o governo da oligarquia liberal assinou outro, o Tratado de Petrópolis, em que entregava o Acre ao Brasil. De forma similar ao caso do outro extremo pouco explorado do seu território, o litoral do Pacífico, o antecedente imediato que deflagrou a “questão do Acre” foi a cessão (ou, ao menos, a tentativa de cessão), pelo governo boliviano, em 1901, da exploração econômica da região a uma holding norte-americana, a The Bolivian Syndicate, armada na tentativa de estabelecer o negócio de carrear o patronato do governo norte-americano à precária soberania boliviana na região, a troco da entrega não apenas do seu potencial econômico, mas do seu efetivo controle militar.

De fato, a região vinha sendo objeto de uma invasão maciça de seringueiros brasileiros, e a Bolívia parecia querer escolher o caminho mais cômodo para lidar com ela: “terceirizá-la”. Tal como os contratos de exploração dos recursos energéticos (hidrocarbonetos) firmados durante o período neoliberal quase cem anos depois, assim como toda a história da exploração mineral do país no século 20, restariam à oligarquia boliviana os trocados fáceis das comissões e propinas dos grandes negócios transnacionais, em contrapartida à garantia que sempre ofereceu de uma permanentemente irrisória tributação desses ricos negócios, o que, por sua vez, jamais permitiu uma capitalização interna do país, e manteve o Estado sob uma baixíssima capacidade de promoção da infra-estrutura econômica. A consumar-se o contrato de 1901 com a Bolivian Syndicate, entretanto, o Acre se tornaria, de fato, um protetorado norte-americano na Amazônia. Numa das suas poucas lúcidas iniciativas geopolíticas contra o então nascente novo império, o Brasil declarou o Acre em litígio e, combinando presença militar com ação diplomática, abocanhou definitivamente o território dois anos depois.

Esses fatos históricos bolivianos, ainda que pareçam distantes, não são mera ilustração inócua. Eles retratam o caráter do secular projeto nacional dessa oligarquia criolla: não está em questão integrar, territorial, social e economicamente uma nação; trata-se apenas de usufruir, da maneira que for possível, do país, como se fosse sua hacienda, seu latifúndio presumido por direito e privilégio, de casta e de nascença. O que assim não o for pode ser descartado, como coisa “inservível”, como dizia o presidente Melgarejo a respeito do pantanal mato-grossense. O projeto nacional histórico da oligarquia boliviana jamais foi um projeto de integração, mas apenas um projeto de usufruto. E esse foi o projeto que conduziu o país até o momento.

Os últimos anos têm sinalizado de forma um tanto contundente o que poderíamos reconhecer como o esgotamento da viabilidade política (e social) desse projeto. Várias são as causas, que vão do adensamento dos projetos estratégicos alternativos de Estado, gestados por setores não-oligárquicos (ou francamente anti-oligárquicos), e politicamente respaldados pelo movimento popular de base indígena, até a generalização social (ou o reconhecimento de legitimidade) da dramática percepção de que as atuais reservas extrativas disponíveis (mais especificamente, os hidrocarbonetos) são a última alternativa, o último recurso patrimonial rapidamente conversível para tentar promover a capitalização interna e algum processo de desenvolvimento que não seja baseado na predação, na concentração e no privilégio, que caracterizaram historicamente a economia e a conformação social bolivianas (e tantas outras latino-americanas mais, que talvez apenas não tenham se defrontado ainda com o drama simbólico da escassez iminente). Em suma, trata-se da emergência de uma outra racionalidade, que propugna, ainda que de forma tateante, uma outra possível forma de regulação social; um projeto que, no que diz respeito ao horizonte do Estado e da nação, mal ensaia seus primeiros passos, com a hesitação e os tropeços característicos das experiências históricas concretas.

Isso não quer dizer, no entanto, que a lógica do projeto oligárquico tenha deixado de funcionar; não apenas porque haja pesadíssimos interesses predispostos a subsidiar sua aplicação até o paroxismo do esgotamento, até “roer o osso” dos recursos do país, mas porque trata-se de uma lógica cultural que quer reconhecer o mundo como “naturalmente” organizado segundo a sua perspectiva. Não é nenhum exagero dizer que os dias que passam na Bolívia são o cenário do enfrentamento frontal de duas visões de mundo distintas, que lutam por fazer valer a sua legitimidade; uma fundada sobre um sólido aparato institucional e regulatório, construído ao longo de muito tempo no espaço do Estado; outra ainda tão carente de mecanismos concretos nesse mesmo domínio político que seria mais justo, aí, ao invés de chamá-la de “visão de mundo”, reconhecê-la, mais que tudo, como um “vislumbre”.

Antes que algum simplista se disponha apressadamente a beatificar o governo do Presidente Evo Morales, é preciso dizer que, como qualquer experiência concreta, sobretudo em ambiente adverso em uma série de dimensões — regulatória, econômica e administrativa (flagrantemente caracterizada pela carência de quadros —, seus equívocos podem assumir proporções melancólicas: condução errática do planejamento econômico, incorporação de quadros políticos consideravelmente espúrios, concessões ao oportunismo administrativo em lugar da institucionalização dos mecanismos decisórios etc. Entretanto, não se deve cometer a irresponsabilidade (a não ser que movida pelo puro cinismo ideológico) de se abstrair as contingências e a inapelável constatação de que “tudo está para ser feito”, na expectativa ilusória (ou na cínica suposição) de um “paraíso” rápido e automático. Isso seria negar toda a política e cair no mero messianismo.

Desde o clássico Buscando un Inca, do peruano Alberto Flores Galindo, os analistas das sociedades andinas têm sublinhado a recorrência histórico-cultural, “para o bem ou para o mal”, do messianismo das grandes transformações súbitas, a reviravolta de mundos, o pachakuti da cosmologia indígena (termo que, por casualidade, dá nome a um partido político indianista no Equador...). O messianismo é, ao mesmo tempo, o alimento de grandes esperanças e das mais profundas frustrações. Não seria exagero dizer que uma certa “melancolia histórica”, presente nos países andinos, seja também (ou sobretudo) fruto dessa marca cultural. E não é difícil imaginar o quão difícil seja o trabalho da política dos Andes, sob as tenazes desse atavismo messiânico. Não se devem desprezar, portanto, os recursos passionais através dos quais a velha oligarquia possa fazer uso do espírito messiânico para, paradoxalmente, deslegitimar, de forma marota, qualquer projeto de transformação social que se pretenda mais sistemático, e que, assim, lhe seja estranho, indócil e não domesticado. Esperar que se transforme, em um estalo de dedos, um país estruturalmente condicionado ao abuso da injustiça e do privilégio arbitrário num paraíso alternativo não é apenas uma expectativa equivocada; ou é uma expectativa cega ou é uma expectativa construída para cegar.

Olhar para a política boliviana hoje exige como precaução elementar o reconhecimento de que, em larguíssima medida, a negação da política, implícita na atitude messiânica, é a ração popular que a velha oligarquia se esforça por servir às pratarradas, para empanturrar os espíritos atabalhoados. Por uma parte, pretende-se condenar o presidente Morales por não ter trazido à terra o paraíso, e, por outra, constrói-se um outro salvacionismo messiânico, lastreado no chauvinismo regionalista, pelo qual só o separatismo, sob a forma marota de “autonomias regionais”, pode subsidiar o “aperfeiçoamento da democracia”. Dessa cortina de fumaça, que não deixa de ser um ardiloso golpe político, se tratará logo adiante.

Feito esse parêntesis, não é difícil compreender que, apesar de um irremediavelmente árduo (senão até mesmo escasso) sucesso no quesito “eficiência” (econômica, financeira e administrativa), a aposta de um governo como o de Evo Morales é outra: é a do difícil trabalho político de construção de novos mecanismos institucionais de regulação social, através dos quais os próprios critérios de “eficiência” se deslocam para outros marcos que não os de uma certa (ou, antes, duvidosa) “estabilidade”, que mantém intacta uma estrutura de reprodução da exclusão. Nesse sentido, a aposta do governo Morales é, em essência, o avesso daquela dos governos Lula, por exemplo. E é exatamente nesse ponto que nasce o pânico da oligarquia.

Desde o final do século 16, a tradição jurídica espanhola e a interpretação da Conquista feita pelo Padre Bartolomé de las Casas consagraram para a América Hispânica o reconhecimento de dois conjuntos sociopolíticos objeto de distintos tratamentos: a “república dos espanhóis” e a “república dos índios”. Enquanto a primeira dispôs-se a ver a segunda de acordo com o marco social medieval (em sua versão ibérica) da vassalagem, a segunda esperava da primeira, nos Andes, o cumprimento dos tratos políticos firmados segundo a lógica local da reciprocidade. Durante muito tempo, os índios andinos demandaram dos espanhóis o reconhecimento das suas autoridades locais e dos seus territórios, enquanto lhes prestavam serviços, como já estavam acostumados a fazer desde tempos pré-hispânicos. Para a nascente sociedade hispânica do Novo Mundo, o serviço dos índios era o meio imprescindível e cobiçável para acumular riquezas, fossem retiradas das minas, fossem retiradas da agricultura ou de qualquer forma de “indústria” que os índios pudessem prover. A mão-de-obra indígena era permanentemente repartida sob a forma de mercês legais, dentro da estrutura de uma sociedade regida por privilégios de casta. Ainda que essa sociedade tenha historicamente se modificado em uma série de aspectos, o princípio lógico das mercês e o da naturalidade do privilégio serviram de base para a racionalidade oligárquica do usufruto.

A exploração do trabalho logo se tornaria brutal; e a segregação social, um recurso de legitimação da exploração. Até meados do século 20, na Bolívia, a servidão indígena era regulamentada por lei. A Revolução Nacionalista de 1952 foi um ensaio, ainda que tímido, de mudança, logo diluído, fazendo com que a estrutura de uma sociedade segmentada em estamentos de privilégio continuasse funcionando e, com ela, a lógica do acesso à riqueza e aos recursos do país. A recente chegada de um “índio” à Presidência da República, com todo o movimento social que lhe serviu de base, não é mero exotismo étnico. E também não é um sinal natural do “avanço da democracia”, como, certa feita, supuseram os partidos oligárquicos, ao levar, como vice-presidente do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada, o intelectual indígena Victor Hugo Cárdenas. Ao chegar à Presidência, embalado pela maré dos movimentos sociais, Evo Morales representou uma afronta à ordem social dos privilégios de casta.

E a afronta não parou nisso. A agenda política gestada por aqueles movimentos, além de consumar-se na indignada mobilização popular que enxotou da Presidência e fez fugir do país o timoneiro das reformas neoliberais, consagrou também a necessidade de uma nova ordem constitucional. Ao convocar novas eleições, o governo de transição não apenas convocou o pleito que elegeu Morales, mas também o que elegeu a nova Assembléia Constituinte. Seus trabalhos encerraram-se no último mês de dezembro, com a elaboração de um novo marco legal regulatório para a sociedade boliviana, inovador na instituição de autonomias indígenas relativas, que implicam na equiparação dos seus sistemas normativos tradicionais com os demais da sociedade, na instituição de direitos coletivos e novas formas de gestão social dos recursos naturais e ambientais, na criminalização da discriminação e na ampliação, em diversidade, dos direitos individuais. Ou seja, o ensaio de um projeto nacional integrador baseado na expansão da cidadania.

O que esse ensaio político reitera, particularmente para o caso latino-americano, é que a integração social de uma nação implica numa tarefa regulatória que vai bem mais além da estrita territorialidade e da mera institucionalidade formal do Estado. Ademais, o projeto constitucional não será promulgado, mas sim submetido a plebiscito popular. Por tudo isso, pretende-se que a Bolívia comece a se defrontar com um imperativo mais exigente de legitimação democrática que o velho hábito da opacidade dos negócios até então estabelecidos no clube do poder, o que faz com que um pânico vociferante e violento se apodere da velha oligarquia, que se vê, de pronto, no risco iminente de perder anéis e dedos para um ameaçador ensaio de controle social. Esta mesma oligarquia, que tanto inflou a retórica da democracia enquanto gozava do condomínio dos privilégios durante os governos neoliberais, dá agora mostras cabais de que, para ela, a democracia é apenas uma retórica de conveniência, ou, antes, de que não é exatamente na democracia que ela está interessada.

A confrontação política era óbvia. Agora, ela se torna dramática. A razão do drama é que, como se disse antes, a lógica oligárquica não deixou de funcionar.

Acantonados na região de Santa Cruz de la Sierra, sob o abrigo do agro-business monocultor e exportador de soja, montado sobre a apropriação latifundiária ilegal e extorsiva (sobretudo frente às pequenas comunidades indígenas) — ação sustentada, por sua vez, pela pistolagem (que implica no assassinato sistemático de líderes das associações comunais e na intimidação social generalizada), pela corrupção judicial e pela indústria da apropriação pura e simples de créditos agrícolas —, os novos negócios da oligarquia estabeleceram uma rede de relações promíscuas na sociedade civil em geral e com os demais departamentos (as sub-unidades administrativas ao interior do país) do oriente boliviano, onde a corrupção é a norma, a pistolagem é a base da autoridade e a autonomia do Judiciário, mera ficção. Ao sul dessa região encontram-se as maiores reservas de gás do país; ao norte, os ainda insuspeitos e incalculáveis recursos da Amazônia; e, ao longo de toda ela, as terras mais férteis de toda Bolívia. A nova regulamentação constitucional, redigida pelos representantes do povo, democrática e livremente eleitos, é reconhecida pela reconfiguração oligárquica assentada nessa região como uma ameaça; uma ameaça não tão simplesmente aos interesses dos seus negócios, mas à lógica pela qual essa oligarquia crê que o mundo deva ser regido.

Recusando peremptoriamente o projeto constitucional, ainda que pretendendo valer-se do espírito geral reformista, o poder oligárquico, senhor de homens e de almas na região da assim chamada “Meia-Lua” (apodo que se deve à sua forma geográfica), pretende impor, na marra e contra toda a ordem legal, autonomias regionais separatistas que preservem seus feudos de poder e de exploração da riqueza, através de um projeto de completa independência administrativa, tributária e de gerência dos recursos naturais locais. Tal como sempre o fez historicamente, a oligarquia se basta em descartar aquilo que não obedece imediatamente às suas ordens. Agora, é o resto do país, com toda sua indiada, sua plebe rebelde e suas veleidades democráticas que lhe é... inservível.

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