segunda-feira, 23 de junho de 2008

"Lutamos contra o preconceito de que não existem militares gays"


DW:
Como o Exército lida com a homossexualidade na Alemanha? Sobre o tema, DW-WORLD.DE entrevistou o primeiro-tenente Peer Uhlmann, representante dos interesses dos afiliados homossexuais do Exército alemão.

O caso dos sargentos gays do Exército brasileiro que assumiram publicamente seu relacionamento homossexual acendeu no Brasil uma questão que vem sendo tematizada há décadas nos assim chamados países industrializados. Em entrevista exclusiva à DW-WORLD.DE, o primeiro-tenente Peer Uhlmann, membro da diretoria do Círculo de Trabalho dos Afiliados Homossexuais do Exército alemão (AHsAB e.V.), respondeu sobre a situação no país.

DW-WORLD.DE: Como membro da diretoria do Círculo de Trabalho dos Afiliados Homossexuais do Exército alemão (AHsAB e.V.), o senhor poderia nos relatar como o Exército alemão lida com a homossexualidade?

Primeiro-tenente Peer Uhlmann, do Exército alemãoPeer Uhlmann: Desde fins do ano 2000, existe no Exército alemão um decreto feito para regulamentar a forma de relacionamento, sobretudo entre homens e mulheres, dentro e fora do expediente. Graças à então iminente abertura do Exército para mulheres e graças a um militar combatente, a liderança do Exército foi obrigada a discutir intensamente o tema da tolerância. Pela primeira vez, um decreto do Exército tematizou explicitamente o relacionamento privado dos militares.

Anteriormente, a sexualidade em si não existia, ela era assunto privado e não tinha nada a ver com o serviço. O decreto deveria sobretudo esclarecer as conseqüências dos contatos privados, principalmente entre mulheres e homens. Mas também a homossexualidade foi abordada no decreto.

Segundo a diretiva, é indiferente para os superiores quem tem uma relação com quem e de que forma a desfruta. O importante é que o trabalho não seja prejudicado por esta relação. No que concerne a isto, o Exército alemão não difere das empresas da economia livre.

Até que ponto o decreto sexual de dezembro de 2000 atingiu o objetivo da igualdade de tratamento entre os sexos?

Em um exército, em princípio, a patente, a performance e a capacidade dos soldados são mais importantes que suas preferências pessoais. Se um soldado é gay ou não, isto não interessa à execução de suas tarefas. Também na avaliação de seu rendimento e nas promoções, isto não deveria ter nenhuma importância. Escapa a qualquer controle, no entanto, o fato de preconceitos escondidos exercerem aí influência. O mesmo vale, por exemplo, para militares femininos e masculinos de origem migratória.

O que os militares fazem depois do serviço, em casa ou em sua acomodação, é desinteressante desde que outros não sejam perturbados. Tanto faz se um soldado recebe seu namorado ou sua namorada em sua casa.

O decreto é um bom ponto de partida, mas ele não pode combater a intolerância – encontrada em todos os níveis hierárquicos – nas cabeças das pessoas. Nesse caso, principalmente a responsabilidade dos superiores é requisitada. Apesar do decreto, faltam aí, em muitos casos, a necessária sensibilidade e um tratamento sem preconceitos do tema. Sobretudo discriminações veladas não se deixam excluir.

Existem casos de transferências ou queixas de militares femininos e masculinos que assumem abertamente sua homossexualidade e por isto são discriminados?

Até os anos de 1980, era normal excluir homossexuais masculinos do serviço militar por serem inaptos. Em 1999, um oficial apelou ao Tribunal Federal Constitucional contra sua transferência devido à sua tendência homossexual. A justificativa do Ministério estava cheia de preconceitos: o moral da tropa não poderia ser prejudicado, a autoridade de um superior homossexual seria minada, etc. A Justiça não apoiou esta argumentação. Encontrou-se então em consenso extrajudicial.

Conhecemos casos em que militares homossexuais, bissexuais ou também transgêneres foram zombados, evitados ou desacreditados às escondidas. Aí se encontra o verdadeiro problema. Esta forma de discriminação é difícil de controlar, ela prejudica o ambiente de trabalho e influencia outras pessoas que, em princípio, não tinham preconceitos. Se os superiores não agirem corretamente, um tratamento aberto do tema homossexualidade é quase impossível.

É possível avaliar quantas pessoas homossexuais fazem parte do Exército alemão?

Também o Exército é um perfil da população. Quase todas as facetas da nossa sociedade estão representadas, só que estas não são reconhecidas, por baixo do uniforme, à primeira vista. É alto o número daqueles que renegam sua orientação sexual no Exército alemão, por medo de conseqüências negativas. Somente poucos têm a coragem de assumi-la abertamente e, por exemplo, registrar perante seus superiores uma parceria civil homossexual. Acreditamos que cinco a dez por cento dos membros do Exército alemão são homossexuais.

Em 2006, a revista Der Spiegel relatou que o Ministério alemão da Defesa queria evitar que soldados em viagens de serviço freqüentassem áreas próximas a bares gays, impedindo assim conseqüências negativas para a imagem do Exército alemão. Isto não seria uma forma de discriminação?

Esta tentativa do Ministério alemão da Defesa foi novamente marcada por preconceitos. O caso mostra claramente que, sobretudo em escalões mais altos, também na política, as pessoas ainda têm muitas reservas. Mas, em vez de discutir os problemas de forma construtiva, eles são transformados em tabu. Claro que isto é uma forma de discriminação.

E sempre há novos casos. Há pouco, a organização que representa os interesses dos membros do Exército, a Federação Alemã dos Militares, exigiu no tocante ao tema igualdade de direitos a exclusão das parcerias civis homossexuais, no parecer que deu sobre a lei de realinhamento dos serviços públicos. A justificativa foi que isto seria muito complexo e precisaria de uma lei própria.

Então nos perguntamos para quê. Isto poderia ser muito fácil: igualdade de direitos – e pronto! A passagem "parcerias civis são equivalentes em todos os pontos ao casamento" poderia esclarecer todas as questões de uma só vez. Mas isto é demais para muitos conservadores.

Esta forma de discriminação através de leis não é rara na Alemanha. Atualmente, existem muitos casos de tratamento desigual no tocante à remuneração, benefícios e aposentadorias. Eu mesmo estou lutando pelo complemento familiar. Casados o recebem, eu e o meu parceiro não – e isto, ainda que nos encontremos objetivamente em situação semelhante.

Que atividades e objetivos persegue o Círculo de Trabalho de Afiliados Homossexuais do Exército? Quantos membros possui?

Nós temos atualmente por volta de 100 membros. Como o Exército alemão está presente em todo o país, também estamos representados em toda a Alemanha. Nós estamos à disposição dos soldados no local – não somente dos homossexuais que têm problemas com seus camaradas e superiores – também dos superiores que precisam de ajuda para lidar com soldados, soldadas e funcionários civis homossexuais.

Em seminários para superiores, nós estimulamos a desmontagem de preconceitos e intolerância. Nossa organização existe desde 2002 e agora se engaja na discussão política. Estamos em troca ativa com outras representações de interesses e estabelecemos contatos com a política para defender os interesses dos nossos membros. Também procuramos a divulgação pública, por exemplo, nas paradas de orgulho homossexual, e lutamos contra o preconceito que não existem militares gays.

Assumir uma tendência homossexual é muito difícil para muitos soldados jovens. Nós os aconselhamos e os acompanhamos para que possam desfrutar das nossas experiências.

Como é a situação em outros países europeus? Existem organizações como a AHsAB em outros países?

Cada Exército é único. As preocupações e necessidades dos soldados diferem de país para país. Em muitos países, existem organizações que ajudam os afiliados homossexuais das Forças Armadas – em alguns países de forma mais ofensiva, em outros, mais escondida. Para isto, a situação política e a aceitação social são decisivas. A longo prazo, nos engajamos naturalmente por cooperações e pela troca de experiência com estas representações de interesses, também no estrangeiro.

Na sua opinião, por que os Exércitos de muitos países têm problemas com militares homossexuais?

Os Exércitos formam sua coesão através da tradição e do espírito de corpo. Muitas das formas de comportamento se assemelham a rituais. E aí a homossexualidade não tem espaço.

É um tema que não é tratado abertamente. Nestas unidades marcadas por uma masculinidade exacerbada, a homossexualidade é considerada uma fraqueza. Principalmente nas unidades em que a forte coesão é importante, como no caso de unidades de combate. Que soldado forte quer escutar isso sobre ele?

Os processos de dinâmica de grupo levam a um banimento de comportamentos que variam da maioria. Por isso, soldados gays não assumem freqüentemente sua homossexualidade. O resultado é que esta não é tematizada. Quando ele ou ela a assume, isto é visto como fraqueza, como exceção. Teme-se o desconhecido e evita-se o contato. Em caso extremo, o militar está, de repente, isolado.

O pedagogo Peer Uhlmann, nascido em 1980, é membro da AHsAB e.V. desde 2004 e a partir de 2008 faz parte de sua diretoria. Ele entrou no Exército em 1998, tendo agora o posto de primeiro-tenente. Atualmente, Uhlmann trabalha no serviço de imprensa em Mayen, próximo a Koblenz.


Carlos Albuquerque

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